Maurilio Lima
Botelho
A expressão urbana
da crise do capitalismo
tem demonstrado que a natureza complexa
da estrutura das cidades
− e da infraestrutura social em geral − não pode ser facilmente
enquadrada nos circuitos
da valorização do valor sem corroer com isso os alicerces dessa própria
socialização. Isto é, o fato de que a lógica da exploração
privada tenha avançado
para a estrutura
pública urbana
e em seguida
para os imóveis
domésticos de um modo totalmente inédito
só revela o quanto
a própria reprodução
privada não é
mais capaz
de se sustentar , precisando de um
fôlego extra
obtido através da liquidação
de elementos fundamentais
que a própria
civilização burguesa havia erigido como bens invioláveis − o poder público e a casa .
A “acumulação via
espoliação ” (David Harvey) não é outra coisa senão essa fase avançada da crise do capital
em que
as próprias bases de sustentação da economia
de mercado precisam ser
queimadas para
manter vivo o
fogo da valorização do valor . A economia
burguesa age como o Fileas Fogg de Julio
Verne que, terminado o combustível, precisa desmontar
a armação de madeira
do navio para
queimá-la nas caldeiras e continuar
navegando. A estrutura pública do Estado
e, por fim ,
a própria estrutura
física das cidades
− incluindo aí a habitação
privada − são
o Henriqueta sendo liquidados ao fim de um
percurso que em
momento algum
demonstrou ter um destino
qualquer .2
Há quatro décadas
que a expressão
crise urbana
comparece aos artigos especializados de sociologia urbana ,
arquitetura ou
geografia . Contudo ,
são raros
os momentos em
que a expressão
revela a profundidade conceitual e os vínculos
essenciais que
o desenvolvimento urbano
mantém com a própria
escalada da socialização capitalista .
De modo geral, o termo
se refere às dificuldades enfrentadas pelo poder público
com a ampliação da violência
urbana ou
a problemas arquitetônicos específicos decorrentes do esgotamento das propostas modernistas.3
A crise urbana
não é um
fenômeno exclusivamente
sociológico, arquitetônico e muito menos um problema policial − a crise urbana é
a expressão histórico-espacial da crise estrutural do capitalismo .
Mas a crise
urbana não
é mera “manifestação ”,
um efeito
secundário de algo
essencial : a irrupção
urbana da crise
produz processos sociais
que alimentam, desenvolvem e complexificam
a própria crise
estrutural, dado que
a estrutura urbana
não é meramente
base
física da produção
capitalista , é também
o seu fundo (grund)
geográfico .4 Também a crise urbana não é uma
“face ” superficial
da crise , no sentido
da aparência exterior
de um processo
mais profundo :
assim como
a socialização pelo valor
é uma forma
de complexo conteúdo
social , as formas
urbanas são determinações sociais
cuja natureza
não pode ser
isolada da natureza da mercadoria .5 Crise urbana , portanto , é um conceito que
designa a dimensão urbana
da crise estrutural do capitalismo , o que
significa dizer que
inclui a estrutura
urbana no centro do processo
de crise , como
dimensão fundamental
desta e ao mesmo tempo
como expressão
mais visível
de decomposição social
decorrente do crash socializador. Crise urbana é
o processo de desestruturação do tecido urbano, que
se estende em todo
o mundo desde
a década de 1970, em
virtude das dificuldades
de reprodução da economia
de mercado . Incapaz
de se manter numa direção
de aprofundamento e ampliação , a economia de mercado
busca artifícios
alheios à lógica
essencial de exploração
do trabalho abstrato
para se prender nos trilhos da sua espiral social envolvente. Ficcionalização
da riqueza , liquidação do
patrimônio público-estatal, guerras de pilhagem ,
endividamento progressivo
e insustentável do Estado
e superexploração do trabalho são estratégias
que buscam sustentar
a economia de mercado
e estender os limites
absolutos da socialização pela mercadoria
numa “fuga para
a frente ” (Robert Kurz) inconsciente
e destrutiva . Essas estratégias ,
fundamentais para
a manutenção da reprodução
capitalista , não
podem ser isoladas do núcleo
da crise urbana .
A ficcionalização da riqueza corresponde à
financeirização dos imóveis , o gerenciamento financeiro
das cidades , a “arquitetura
financeira ” (Otilia Arantes) e a extensão das malhas
do capital a juros
sobre a vida
urbana . A crise
das hipotecas subprime tornou patente que a financeirização da riqueza
não é uma marca
específica do comportamento
empresarial , mas
tem repercussões também no comportamento familiar
e individual , com
a transformação de imóveis em ativos .
A liquidação do patrimônio
estatal significa a privatização dos espaços públicos ,
a desestatização de serviços básicos essenciais
(água , eletricidade, telefonia , coleta de lixo ,
vias públicas etc.), a exploração privada de recursos públicos
(financiamento público a empreiteiras , administração
urbana privada
e concessões de serviços
de infra-estrutura ao capital privado ).
O “empresariamento urbano” (Harvey) é a demonstração de como as municipalidades
convertem progressivamente fundos públicos em recursos privados. Contudo, os processos exaustivamente
estudados, cuja responsabilidade recai sobre os governos
neoliberais, não são
de origem exclusivamente
política , assim
como não
estão restritos ao espectro conservador
− cada vez
mais se identifica um
“consenso neoliberal suprapartidário ” (Robert Kurz), dado
que as condições
de crise estrutural do Estado impõem uma necessidade
quase universal
de ajuste fiscal
que se manifesta
sob a forma
de decomposição urbana
crescente .6 Mas em nenhum momento as “soluções ”
neoliberais conseguem sequer resolver o próprio problema de endividamento
público , que
se aprofunda de modo independente
e ao mesmo tempo
em decorrência
dessa redução da intervenção pública .7
As guerras de pilhagem aparecem sob diversas formas no centro e na
periferia do capitalismo, seja sob a forma de guerras civis internas, de
conflitos armados entre crime organizado e poder público (cada vez mais
instrumentalizado e apoiado por agentes privados) ou entre facções do crime
organizado (máfia, tráfico de drogas, milícias, piratas), assim como guerras de
ocupação e exploração de recursos naturais (intervenção dos EUA no Afeganistão
ou Iraque, por exemplo). A “epidemia de guerras” (Hobsbawn), uma característica
do mundo contemporâneo, revela uma tendência crescente de ocorrência em espaços
da vida quotidiana e alimenta o fenômeno cada vez mais atual de “militarização
do espaço urbano” (Mike Davis).
O endividamento progressivo
do Estado também
não é um
fenômeno de ordem
exclusivamente política ,
no sentido de uma apropriação
do aparato estatal
por interesses
privados − algo
que , de resto ,
se tornou uma marca neoliberal, isto é, a promiscuidade entre a administração
pública e privada .
As dificuldades derivadas da “crise fiscal do
Estado ” (James O´Connor) entram em conflito direto com as necessidades sociais
diárias , isto
é, as despesas passadas
não-pagas se somam às despesas presentes necessárias e criam um
ritmo vertiginoso
de ampliação das dívidas
públicas que se multiplicam com as exigências
da ficcionalização da riqueza − criação
de liquidez necessária
ao “bom andamento ”
do cotidiano capitalista. Essa contradição
estrutural retroalimenta o circuito da crise urbana à medida em que os
compromissos financeiros minguam as receitas da administração
urbana , que ,
por sua
vez , frente
à incapacidade crescente
do Estado em
efetivá-la, é repassada para a gerência
privada . Decadência
dos centros urbanos ,
segmentação dos subúrbios ,
desarticulação das vias
de circulação e encarecimento da vida urbana são as marcas
dessa complexa teia
de efeitos da crise
do Estado e crise
do Mercado .
Os obstáculos à reprodução capitalista
recaem sobre as classes
trabalhadoras na forma de redução dos direitos sociais ,
precarização das condições de trabalho, ampliação
da jornada de trabalho
(retorno da mais-valia
absoluta ) e desemprego em massa. O entrelaçamento entre
todas essas formas de expressão da crise
se torna evidente :
frente ao empobrecimento ,
as camadas sociais
não-proprietárias caem num circuito de endividamento e mesmo
os proprietários de imóveis
alienam seus bens
para manter seu padrão de consumo ou rolar suas dívidas . Ainda sob essa condição
de superexploração e exclusão do trabalho aparecem
os efeitos da desindustrialização industrial , desconcentração
urbana e esvaziamento econômico de regiões
inteiras: a transferência de fábricas para as regiões sub-remuneradas do Terceiro
Mundo é um
problema ao mesmo
tempo de escala
global (formação
do mercado mundial)8 e um problema de escala
local − a crise
urbana em
sua manifestação
mais evidente
como fechamento
de fábricas , abandono
de casas , baldiamento de terrenos etc. O fenômeno mais característico da
urbanização capitalista contemporânea , que
poderia ser inclusive denominada urbanização
de crise é a expansão
de aglomerações humanas em cidades que não
produzem emprego .9
Com o significado mais profundo
de crise estrutural, relacionada diretamente aos problemas
fundamentais da reprodução
capitalista e de manutenção
do Estado, portanto, que a crise urbana
deve ser compreendida. A única forma
de enfrentar esse
objeto tão
complexo é com
uma postura teórica
ampla , destituindo-se de limitações conceituais e disciplinares
e tomando a dinâmica social como elemento crítico
primordial . Isso
significa romper a imediatidade presente
na expressão crise urbana
e tomá-la em sua
atualidade histórica :
problemas urbanos
são uma marca
presente em toda a história
do capitalismo , o que
configura a crise urbana
é a amplitude , abrangência e profundidade espacial
dos problemas urbanos
nas últimas décadas − crise urbana é,
assim, a realização histórica
de uma dificuldade essencial
de reprodução do espaço
urbano de acordo
com as fraquezas estruturais de reprodução capitalista .
Crise urbana
não é, assim ,
um fenômeno meramente acidental
na trajetória do desenvolvimento
do capitalismo , é a manifestação
mesma do desenvolvimento
capitalista em
sua fase mais avançada e
crítica .
Notas
1 - “Em
cada país
capitalista adiantado o capital monopolista socializou, total
ou parcialmente ,
os custos do planejamento ,
construção , desenvolvimento
e modernização dos projetos de capital social físico . (...) os projetos
são socializados porque
os custos seguidamente
excedem os recursos das empresas ou são considerados como
riscos financeiros inaceitáveis
pelas diretamente interessadas”
(O´Connor, 1977: 108).
2 - A imagem
do personagem de A volta ao mundo
em oitenta dias
como referência
à relação atual
entre Estado
e Mercado foi apresentada por Ernst Lohoff (2004).
3 - Esta é a tese de Wolf von Eckardt, que
reduz a crise urbana
a uma traição aos princípios
da “revolução arquitetônica do século XX” (1975: 15).
4 - “A expansão
do espaço urbano
não é somente
uma questão de aumento na
centralização das forças produtivas ou da escala na
qual ocorre o sistema
diário de trabalho
concreto . Ele
deveria ser antes
interpretado como a expansão
da esfera geográfica
diária do trabalho
abstrato ” (Smith, 1988: 198).
5 - “... a função social que é
realizada através de uma coisa
confere a essa coisa um
particular caráter
social , uma determina forma social , uma ‘determinação de forma ’ (Formbestimmtheit), como
Marx com freqüência
escreveu. Uma função social específica ,
ou ‘forma econômica de coisa ’,
corresponde a cada tipo
de relação de produção
entre pessoas ”
(Rubin, 1987: 50).
6 - “... todos os Estados
do mundo começaram a sofrer
importantes pressões
para que
adotassem políticas neoliberais. Naturalmente , o processo não tem ocorrido de maneira
uniforme e tampouco
pode dizer-se que tenha concluído com êxito total , mas o certo é que
tem-se convertido numa espécie de norma universal a que todos os Estados mais recalcitrantes estão obrigados
a enfrentar ” (Harvey, 2004).
7 - Pois ao mesmo tempo em que se reduz
os benefícios e a assistência
social , amplia-se o aparato
repressivo do Estado
para conter os distúrbios provocados por
essa desativação social . Ou , nas palavras
de Loïc Wacquant, é preciso cada vez “mais Estado policial e penitenciário" para
remediar “menos
Estado econômico
e social ” (2001: 7). David Harvey
exemplifica de modo assustador essa conversão de um Estado social em um Estado policial: os
investimentos públicos para os pobres em Baltimore resumem-se cada vez mais a
construções de presídios (Harvey, 2004: 205).
8 - Uma das mais marcantes características da fase global do capital
é a tendência à equalização da taxa
diferencial de exploração (Mészáros,
2002: 112 e 340), isto é, a superação das fraturas
e estratos que
atravessavam a força de trabalho
mundial e a determinação do padrão de produtividade pela
unidade mais
avançada em
termos técnicos
─ o que significa dizer
que , mesmo
sendo alternativas constantes
e imediatamente viáveis ,
as fábricas superpovoadas das plataformas exportadoras estão desde
o seu nascimento condenadas à morte econômica, que só pode ser superada com upgrade tecnológico , isto
é, ampliação dos meios
técnicos frente
à força de trabalho
viva .
9 - “... diferentemente da viragem do século
XIX para o século
XX, a urbanização atual não está apoiada na expansão
da indústria e do emprego
─ com exceção
da economia exportadora chinesa e poucas
outras (perversas à sua maneira ) (Arantes, 2008: 4).
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