Crise urbana
e crise estrutural do capitalismo
Proposições teóricas
Maurilio Lima
Botelho
Não é um
acaso que
o ponto mais crítico da crise
do capitalismo tenha sido atingido depois de um colapso nos mercados imobiliários
− desde as suas
categorias fundamentais
a socialização capitalista tem de enfrentar o problema
de espelhar em
termos abstratos
a riqueza materializada na estrutura
urbana. Não
é por acaso,
portanto, que
a expressão mais
avançada e mais
grave da crise
estrutural do capitalismo, que se estende
já por
quatros décadas,
manifeste-se agora na expropriação humilhante e violenta
de moradias no centro
mesmo do capitalismo.
Desde o início
de sua propagação,
com o esgotamento do boom do pós-guerra
na década de 1970, a crise da economia
de mercado tem criado
um mostruário
de problemas estruturais nas cidades de todo
o mundo; mas
desde então
a dimensão urbana
da crise tem sido subestimada através da denúncia
do neoliberalismo − os problemas nucleares
da socialização burguesa têm sido interpretados como
decorrentes de uma mera reorganização das forças
políticas na luta
entre capital
versus trabalho, a favor do primeiro. A própria apreensão
da crise urbana
mundial submerge no argumento de que a decadência
das cidades se deve a uma redução conjuntural (consciente
ou não)
da intervenção do Estado,
que teria sido alienado
de suas funções
de planejamento, organização
e execução urbanístico-social. O alerta dado por James O´Connor, já
em 1973, de que
a própria monopolização do capital havia
criado a necessidade
de socialização das despesas com infraestrutura em
função das condições
de (baixa) lucratividade intrínsecas a esse setor,1
teve pouco ou
nenhum eco
na crítica da sociedade. A transferência
de atividades, consideradas básicas, da esfera
pública para
a privada têm sido avaliada do ponto
de vista da mera
privatização das oportunidades de negócio. O que
temos testemunhado em todo esse período ─ o nexo visível entre a
gradual deterioração
dos serviços de infraestrutura e a sua crescente administração privada ─ é grosseiramente explicado por
uma encarniçada vontade de maximizar ganhos
que poderiam ser
obtidos de qualquer maneira
sob formas
menos “selvagens”.
A expressão urbana
da crise do capitalismo
tem demonstrado que a natureza complexa
da estrutura das cidades
− e da infraestrutura social em geral − não pode ser facilmente
enquadrada nos circuitos
da valorização do valor sem corroer com isso os alicerces dessa própria
socialização. Isto é, o fato de que a lógica da exploração
privada tenha avançado
para a estrutura
pública urbana
e em seguida
para os imóveis
domésticos de um modo totalmente inédito
só revela o quanto
a própria reprodução
privada não é
mais capaz
de se sustentar, precisando de um
fôlego extra
obtido através da liquidação
de elementos fundamentais
que a própria
civilização burguesa havia erigido como bens invioláveis − o poder público e a casa.
A “acumulação via
espoliação” (David Harvey) não é outra coisa senão essa fase avançada da crise do capital
em que
as próprias bases de sustentação da economia
de mercado precisam ser
queimadas para
manter vivo o
fogo da valorização do valor. A economia
burguesa age como o Fileas Fogg de Julio
Verne que, terminado o combustível, precisa desmontar
a armação de madeira
do navio para
queimá-la nas caldeiras e continuar
navegando. A estrutura pública do Estado
e, por fim,
a própria estrutura
física das cidades
− incluindo aí a habitação
privada − são
o Henriqueta sendo liquidados ao fim de um
percurso que em
momento algum
demonstrou ter um destino
qualquer.2
Há quatro décadas
que a expressão
crise urbana
comparece aos artigos especializados de sociologia urbana,
arquitetura ou
geografia. Contudo,
são raros
os momentos em
que a expressão
revela a profundidade conceitual e os vínculos
essenciais que
o desenvolvimento urbano
mantém com a própria
escalada da socialização capitalista.
De modo geral, o termo
se refere às dificuldades enfrentadas pelo poder público
com a ampliação da violência
urbana ou
a problemas arquitetônicos específicos decorrentes do esgotamento das propostas modernistas.3
A crise urbana
não é um
fenômeno exclusivamente
sociológico, arquitetônico e muito menos um problema policial − a crise urbana é
a expressão histórico-espacial da crise estrutural do capitalismo.
Mas a crise
urbana não
é mera “manifestação”,
um efeito
secundário de algo
essencial: a irrupção
urbana da crise
produz processos sociais
que alimentam, desenvolvem e complexificam
a própria crise
estrutural, dado que
a estrutura urbana
não é meramente
base
física da produção
capitalista, é também
o seu fundo (grund)
geográfico.4 Também a crise urbana não é uma
“face” superficial
da crise, no sentido
da aparência exterior
de um processo
mais profundo:
assim como
a socialização pelo valor
é uma forma
de complexo conteúdo
social, as formas
urbanas são determinações sociais
cuja natureza
não pode ser
isolada da natureza da mercadoria.5 Crise urbana, portanto, é um conceito que
designa a dimensão urbana
da crise estrutural do capitalismo, o que
significa dizer que
inclui a estrutura
urbana no centro do processo
de crise, como
dimensão fundamental
desta e ao mesmo tempo
como expressão
mais visível
de decomposição social
decorrente do crash socializador. Crise urbana é
o processo de desestruturação do tecido urbano, que
se estende em todo
o mundo desde
a década de 1970, em
virtude das dificuldades
de reprodução da economia
de mercado. Incapaz
de se manter numa direção
de aprofundamento e ampliação, a economia de mercado
busca artifícios
alheios à lógica
essencial de exploração
do trabalho abstrato
para se prender nos trilhos da sua espiral social envolvente. Ficcionalização
da riqueza, liquidação do
patrimônio público-estatal, guerras de pilhagem,
endividamento progressivo
e insustentável do Estado
e superexploração do trabalho são estratégias
que buscam sustentar
a economia de mercado
e estender os limites
absolutos da socialização pela mercadoria
numa “fuga para
a frente” (Robert Kurz) inconsciente
e destrutiva. Essas estratégias,
fundamentais para
a manutenção da reprodução
capitalista, não
podem ser isoladas do núcleo
da crise urbana.
A ficcionalização da riqueza corresponde à
financeirização dos imóveis, o gerenciamento financeiro
das cidades, a “arquitetura
financeira” (Otilia Arantes) e a extensão das malhas
do capital a juros
sobre a vida
urbana. A crise
das hipotecas subprime tornou patente que a financeirização da riqueza
não é uma marca
específica do comportamento
empresarial, mas
tem repercussões também no comportamento familiar
e individual, com
a transformação de imóveis em ativos.
A liquidação do patrimônio
estatal significa a privatização dos espaços públicos,
a desestatização de serviços básicos essenciais
(água, eletricidade, telefonia, coleta de lixo,
vias públicas etc.), a exploração privada de recursos públicos
(financiamento público a empreiteiras, administração
urbana privada
e concessões de serviços
de infra-estrutura ao capital privado).
O “empresariamento urbano” (Harvey) é a demonstração de como as municipalidades
convertem progressivamente fundos públicos em recursos privados. Contudo, os processos exaustivamente
estudados, cuja responsabilidade recai sobre os governos
neoliberais, não são
de origem exclusivamente
política, assim
como não
estão restritos ao espectro conservador
− cada vez
mais se identifica um
“consenso neoliberal suprapartidário” (Robert Kurz), dado
que as condições
de crise estrutural do Estado impõem uma necessidade
quase universal
de ajuste fiscal
que se manifesta
sob a forma
de decomposição urbana
crescente.6 Mas em nenhum momento as “soluções”
neoliberais conseguem sequer resolver o próprio problema de endividamento
público, que
se aprofunda de modo independente
e ao mesmo tempo
em decorrência
dessa redução da intervenção pública.7
As guerras de pilhagem aparecem sob diversas formas no centro e na
periferia do capitalismo, seja sob a forma de guerras civis internas, de
conflitos armados entre crime organizado e poder público (cada vez mais
instrumentalizado e apoiado por agentes privados) ou entre facções do crime
organizado (máfia, tráfico de drogas, milícias, piratas), assim como guerras de
ocupação e exploração de recursos naturais (intervenção dos EUA no Afeganistão
ou Iraque, por exemplo). A “epidemia de guerras” (Hobsbawn), uma característica
do mundo contemporâneo, revela uma tendência crescente de ocorrência em espaços
da vida quotidiana e alimenta o fenômeno cada vez mais atual de “militarização
do espaço urbano” (Mike Davis).
O endividamento progressivo
do Estado também
não é um
fenômeno de ordem
exclusivamente política,
no sentido de uma apropriação
do aparato estatal
por interesses
privados − algo
que, de resto,
se tornou uma marca neoliberal, isto é, a promiscuidade entre a administração
pública e privada.
As dificuldades derivadas da “crise fiscal do
Estado” (James O´Connor) entram em conflito direto com as necessidades sociais
diárias, isto
é, as despesas passadas
não-pagas se somam às despesas presentes necessárias e criam um
ritmo vertiginoso
de ampliação das dívidas
públicas que se multiplicam com as exigências
da ficcionalização da riqueza − criação
de liquidez necessária
ao “bom andamento”
do cotidiano capitalista. Essa contradição
estrutural retroalimenta o circuito da crise urbana à medida em que os
compromissos financeiros minguam as receitas da administração
urbana, que,
por sua
vez, frente
à incapacidade crescente
do Estado em
efetivá-la, é repassada para a gerência
privada. Decadência
dos centros urbanos,
segmentação dos subúrbios,
desarticulação das vias
de circulação e encarecimento da vida urbana são as marcas
dessa complexa teia
de efeitos da crise
do Estado e crise
do Mercado.
Os obstáculos à reprodução capitalista
recaem sobre as classes
trabalhadoras na forma de redução dos direitos sociais,
precarização das condições de trabalho, ampliação
da jornada de trabalho
(retorno da mais-valia
absoluta) e desemprego em massa. O entrelaçamento entre
todas essas formas de expressão da crise
se torna evidente:
frente ao empobrecimento,
as camadas sociais
não-proprietárias caem num circuito de endividamento e mesmo
os proprietários de imóveis
alienam seus bens
para manter seu padrão de consumo ou rolar suas dívidas. Ainda sob essa condição
de superexploração e exclusão do trabalho aparecem
os efeitos da desindustrialização industrial, desconcentração
urbana e esvaziamento econômico de regiões
inteiras: a transferência de fábricas para as regiões sub-remuneradas do Terceiro
Mundo é um
problema ao mesmo
tempo de escala
global (formação
do mercado mundial)8 e um problema de escala
local − a crise
urbana em
sua manifestação
mais evidente
como fechamento
de fábricas, abandono
de casas, baldiamento de terrenos etc. O fenômeno mais característico da
urbanização capitalista contemporânea, que
poderia ser inclusive denominada urbanização
de crise é a expansão
de aglomerações humanas em cidades que não
produzem emprego.9
Com o significado mais profundo
de crise estrutural, relacionada diretamente aos problemas
fundamentais da reprodução
capitalista e de manutenção
do Estado, portanto, que a crise urbana
deve ser compreendida. A única forma
de enfrentar esse
objeto tão
complexo é com
uma postura teórica
ampla, destituindo-se de limitações conceituais e disciplinares
e tomando a dinâmica social como elemento crítico
primordial. Isso
significa romper a imediatidade presente
na expressão crise urbana
e tomá-la em sua
atualidade histórica:
problemas urbanos
são uma marca
presente em toda a história
do capitalismo, o que
configura a crise urbana
é a amplitude, abrangência e profundidade espacial
dos problemas urbanos
nas últimas décadas − crise urbana é,
assim, a realização histórica
de uma dificuldade essencial
de reprodução do espaço
urbano de acordo
com as fraquezas estruturais de reprodução capitalista.
Crise urbana
não é, assim,
um fenômeno meramente acidental
na trajetória do desenvolvimento
do capitalismo, é a manifestação
mesma do desenvolvimento
capitalista em
sua fase mais avançada e
crítica.
Notas
1 - “Em
cada país
capitalista adiantado o capital monopolista socializou, total
ou parcialmente,
os custos do planejamento,
construção, desenvolvimento
e modernização dos projetos de capital social físico. (...) os projetos
são socializados porque
os custos seguidamente
excedem os recursos das empresas ou são considerados como
riscos financeiros inaceitáveis
pelas diretamente interessadas”
(O´Connor, 1977: 108).
2 - A imagem
do personagem de A volta ao mundo
em oitenta dias
como referência
à relação atual
entre Estado
e Mercado foi apresentada por Ernst Lohoff (2004).
3 - Esta é a tese de Wolf von Eckardt, que
reduz a crise urbana
a uma traição aos princípios
da “revolução arquitetônica do século XX” (1975: 15).
4 - “A expansão
do espaço urbano
não é somente
uma questão de aumento na
centralização das forças produtivas ou da escala na
qual ocorre o sistema
diário de trabalho
concreto. Ele
deveria ser antes
interpretado como a expansão
da esfera geográfica
diária do trabalho
abstrato” (Smith, 1988: 198).
5 - “... a função social que é
realizada através de uma coisa
confere a essa coisa um
particular caráter
social, uma determina forma social, uma ‘determinação de forma’ (Formbestimmtheit), como
Marx com freqüência
escreveu. Uma função social específica,
ou ‘forma econômica de coisa’,
corresponde a cada tipo
de relação de produção
entre pessoas”
(Rubin, 1987: 50).
6 - “... todos os Estados
do mundo começaram a sofrer
importantes pressões
para que
adotassem políticas neoliberais. Naturalmente, o processo não tem ocorrido de maneira
uniforme e tampouco
pode dizer-se que tenha concluído com êxito total, mas o certo é que
tem-se convertido numa espécie de norma universal a que todos os Estados mais recalcitrantes estão obrigados
a enfrentar” (Harvey, 2004).
7 - Pois ao mesmo tempo em que se reduz
os benefícios e a assistência
social, amplia-se o aparato
repressivo do Estado
para conter os distúrbios provocados por
essa desativação social. Ou, nas palavras
de Loïc Wacquant, é preciso cada vez “mais Estado policial e penitenciário" para
remediar “menos
Estado econômico
e social” (2001: 7). David Harvey
exemplifica de modo assustador essa conversão de um Estado social em um Estado policial: os
investimentos públicos para os pobres em Baltimore resumem-se cada vez mais a
construções de presídios (Harvey, 2004: 205).
8 - Uma das mais marcantes características da fase global do capital
é a tendência à equalização da taxa
diferencial de exploração (Mészáros,
2002: 112 e 340), isto é, a superação das fraturas
e estratos que
atravessavam a força de trabalho
mundial e a determinação do padrão de produtividade pela
unidade mais
avançada em
termos técnicos
─ o que significa dizer
que, mesmo
sendo alternativas constantes
e imediatamente viáveis,
as fábricas superpovoadas das plataformas exportadoras estão desde
o seu nascimento condenadas à morte econômica, que só pode ser superada com upgrade tecnológico, isto
é, ampliação dos meios
técnicos frente
à força de trabalho
viva.
9 - “... diferentemente da viragem do século
XIX para o século
XX, a urbanização atual não está apoiada na expansão
da indústria e do emprego
─ com exceção
da economia exportadora chinesa e poucas
outras (perversas à sua maneira) (Arantes, 2008: 4).
Referências bibliográficas:
Arantes, Pedro Fiori. O lugar
da arquitectura num “planeta de favelas”. In: Opúsculo, no. 2, Porto, março de 2008.
Davis, Mike. Fuerte Los Ángeles: la militarización del espacio
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Barcelona: Gustavo Gili, 2004, p.
Eckardt, Wolf
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lugar para viver. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
Lohoff, Ernst. Out of Area – Out of Control ─ Sociedade da mercadoria e resistência na
era da desregulamentação
e desestatização (mimeo).
Harvey,
David. “Las grietas de la ciudad capitalista”
(entrevista). In: Revista Archipiélago, 2004.
______. Espaços de esperança. São Paulo: Edições
Loyola, 2004.
Mészáros, István. Para além do capital.
São Paulo/Campinas:
Boitempo e Editora da Unicamp, 2002.
O’Connor, James. USA:
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Rio de Janeiro:
Paz e Terra,
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Rubin, Isaak Illich. A teoria marxista
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Paulo: Editora Polis, 1987.
Smith, Neil. Desenvolvimento desigual:
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Rio de Janeiro:
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Wacquant,
Loïc. As Prisões
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de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.